CAPÍTULO 3 – As Quedas e as Transições
CAPÍTULO 3 – As Quedas e as Transições
A escolha de Direito não foi apenas académica — foi simbólica.
Escolher Direito em Coimbra era como apontar para um futuro sólido, respeitável, com coluna vertebral social.
Mas por dentro, eu já sabia que aquele caminho era construído sobre areia fina.
Entrei com determinação, mas o contexto familiar desmoronava. As pressões externas aumentavam, e o mundo interior ficava cada vez mais barulhento. Aguentei três anos — não por falta de inteligência, mas porque comecei a perceber que saber as leis não era o mesmo que viver com justiça. E que, para alguns, a lógica da letra mata o espírito.
Saí da Universidade sem diploma — mas com algo mais valioso: a consciência de que aquele não era o meu lugar.
E quando não se tem um lugar no sistema, muitas vezes o sistema encontra um lugar para ti.
Fui para o Exército.
Não como fuga — mas como tentativa de renascimento.
Lá, tudo era claro: regras, horários, missão.
A disciplina não me assustava. Pelo contrário, confortava-me.
Fui para as Operações Especiais, depois para o Curso de Sargentos, e finalmente especializei-me como Polícia do Exército.
A cada etapa, deixava cair uma camada daquilo que achava que era.
Gritava-se muito. Marchava-se muito. Dizia-se pouco.
Mas eu observava. Escutava. Interiorizava.
Passei por quartéis, por zonas do país que desconhecia, por pessoas de todas as classes e feitios.
E no fim, fui destacado para os Açores.
Foi um ano inteiro num arquipélago isolado, de beleza crua e paisagens metafísicas. Lá, aprendi uma coisa simples e profunda: a ilha exterior espelha a ilha interior.
A formação foi militar, mas o processo foi espiritual.
Ali percebi que a força não está na rigidez, mas na flexibilidade.
Que um soldado também pode ser filósofo.
E que a caminhada para dentro requer tanto fôlego quanto uma marcha em fila.
Saí do Exército com honra, mas sem plano.
A reintegração civil foi difícil — e frustrante. Trabalhei como segurança. Depois, como servente de mesa.
E foi ali, entre copos e pratos, que reencontrei algo que pensava perdido: a dignidade do gesto, a elegância do serviço, o prazer do encontro humano.
Na restauração, juntei tudo:
— o rigor do Exército
— a curiosidade filosófica
— o domínio das línguas
— a sensibilidade estética
— e a humildade prática
Trabalhei por conta própria, como self-employ, em quintas de casamentos e hotéis de várias estrelas. Aprendi sobre comida, bebida, protocolo — mas, acima de tudo, aprendi sobre presença.
Servir não é submeter-se.
É estar inteiro naquele instante.
Foi talvez a minha primeira forma de arte.

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